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Faz algum tempo… Um amigo decidiu largar o funcionalismo público, a família, os amigos, o conforto e a estabilidade para se aventurar pelo mundo e conhecer tudo o que pudesse antes de não poder mais. Resolveu começar pela Oceania, mais conhecida pelos brasileiros como um lugar “do outro lado do mundo”. Quando conversamos via internet, fiz duas perguntas essenciais que me fizeram compreender e não julgar a atitude dele: por que decidiu ir embora e o que o levou àquele continente tão distante.
A resposta foi mais ou menos a seguinte: “eu queria sair da zona de conforto e descobrir o que existe além das paredes do meu quarto”. Entendi. E foi com essa frase latejando na cabeça que, em 7 de janeiro, cheguei a Salamanca, uma pequena cidade localizada no noroeste da Espanha, a 213 km de Madrid.
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Salamanca, vista da janela do quarto, na Residência Universitária de Olviedo. (Foto: Thaís Siqueira) |
Meus limites geográficos e climáticos não me permitiam imaginar com exatidão o que iria encontrar aqui. Já tinha visto fotos na internet e sabia que era inverno, mas não tinha certeza do que seria essa experiência. A primeira coisa que chamou a minha atenção quando desci do ônibus foram as folhas secas nas calçadas, arredondadas e com três pontas, daquelas que paraense só vê nos filmes, sabe? Uma coisa simples, mas muito significativa. Aquilo queria dizer que eu estava bem longe de casa. E que deslumbramento é a palavra do mês.
Salamanca é uma cidade de estudantes e, de certa forma, existe por causa deles. Tudo gira em torno da Universidade de Salamanca (USAL), uma senhora de quase 800 anos (foi fundada em 1218 pelo rei Alfonso IX, é bem mais antiga que o Brasil, veja só). Inicialmente construída para ser um centro de estudos exclusivamente masculino, o prédio da Universidade conta um pouco da ideologia da época.
A grande escada que leva à biblioteca é dividida em três lances, que simbolizam as três etapas da vida do estudante, as quais começam assim que ele decide seguir o caminho acadêmico. Na primeira parte ele inicia os estudos, segue subindo em direção à sua formação universitária, vista como algo superior à vida comum. Na segunda ele é tentado pelo ser mais perigoso de todo o universo: o cupido. Nesse momento, se se deixar ser atingido, o estudante pode acabar se perdendo de seus objetivos e descendo novamente as escadas. No entanto, se prosseguir e chegar à terceira parte, se tornará mais forte e convicto e conseguirá chegar ao topo. A imagem do cupido ainda aparece, mas, curiosamente, ele está imobilizado por uma espécie de rede que o impede de atirar e suas asas estão cortadas e jogadas ao chão. Descobri que a primeira mulher a ser admitida na USAL foi Beatriz Galindo, conhecida como La latina, pois dominava, entre outras línguas e ciências, o latim.
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Fachada da Universidade de Salamanca (USAL), inaugurada em 1218. (Foto: Thaís Siqueira) |
A fachada da Universidade é toda ornamentada. Aliás, é isso o que mais me encanta aqui. Como os prédios são muito antigos, possuem um estilo gótico, são ricos em esculturas e simbolismo e apresentam uma cor alaranjada, dando a impressão de que a temperatura no inverno está mais baixa do que parece.
Nessa mesma fachada está La Ranita, uma pequena rã esculpida no meio daquela confusão de histórias. Dizem que quem consegue encontrar La Ranita sem a ajuda de outras pessoas, terá sorte para o resto da vida. Eu achei que o que tinha visto era a tal da rã, mas depois descobri que estava enganada e o que vi era algo que não sei descrever, parecia com uma rã, disso eu tenho certeza. Tudo bem, porque Miguel de Unamuno, uma das figuras mais ilustres de Salamanca disse uma vez: “No es lo malo que vean la rana, sino que no vean más que la rana”. Curioso é que a rã em questão era o símbolo do maior dos sete pecados naquele lugar, a luxúria, por isso está próximo de caveiras (ou calaveras), símbolo da morte.
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As pessoas que visitam Salamanca param para contemplar a parede de pedra. (Foto: Thaís Siqueira) |
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Estudar na USAL é como fazer parte de uma história contada há séculos. (Foto: Acervo pessoal) |
Coisa boa ou não, fato é que as pessoas que chegam a Salamanca sabem que o Pátio de Escuelas, de onde se pode ver a fachada, é parada obrigatória. Por essa razão ficam um bom tempo contemplando os ornamentos. Também dizem que o homenzinho com capacete esculpido lá é um astronauta (para mim é um astronauta perfeito, sério), mas na época em que a Universidade foi construída não existiam astronautas. Fica o mistério para aguçar a imaginação e a vontade de ver de perto também.