Denise, Maria, Monique. Três mulheres, três crônicas, três visões sobre ser mulher em Belém neste 8 de março, um dia de luta por direitos como todos os outros.
Nesse 8 de março o Repórter E abriu espaço para três mulheres. Qualquer um poderia escrever textos sobre o Dia Internacional da Mulher, exaltando a beleza, a força, a doçura das mulheres do mundo… Mas o dia é de lutas. Aliás, para essas três mulheres e para tantas outras, esse é mais um dia em que andar na rua é um desafio, o ambiente de trabalho é opressor, a própria casa se torna um lugar hostil. Leia esse post. Se desarme e leia. E se permita entender que o 8 de março é apenas mais um dia de enfrentamento em cada passo dado, para que elas possam apenas ser o que são: mulheres. De preferência sem escrever mais linhas como as que você vai ler agora.
Denise
Trabalhar e estudar nunca foi uma rotina fácil pra ninguém, mas é uma realidade de muitas mulheres. E se não bastasse, muitas de nós temos que lidar com inúmeros assédios e preconceitos no caminho da faculdade e do trabalho, e também dentro desses espaços.
Saio de casa todos os dias às 7h da manhã e passo, no mínimo, 40 minutos dentro do ônibus que vai para a UFPA e que sempre está cheio nesse horário. Há dias em que os assédios começam nesse sufoco que é o transporte público em Belém. Desde olhares que objetificam nossos corpos, toques, até palavras pejorativas ditas ao pé do ouvido que acabam gerando estresse logo cedo. Definitivamente não é uma boa forma de começar o dia, mas são coisas que fazem parte do meu dia-a-dia e do de centenas de outras mulheres.
Na universidade, apesar de ser um espaço múltiplo em que as discussões acerca da representatividade feminina está presente, ainda são muitos os casos de machismo e racismo dentro e fora da sala de aula. E fazer o enfrentamento desses casos às vezes ainda é muito difícil, mesmo sendo necessário.
Após as aulas, é hora de ir pro trabalho. E da mesma forma, o discurso ofensivo e discriminatório maquiado de brincadeira ou piada também é uma realidade das mulheres que trabalham. Seja no estágio ou como profissionais inseridas efetivamente no mercado. Não são poucos os casos. E a diferença entre os espaços da faculdade e do trabalho é que o enfrentamento se torna cada vez mais difícil. Mas não impossível.
Depois do trabalho, volto pra casa encarando os mesmos ônibus lotados que costumo pegar de manhã cedo. Tudo isso cansa, exige um esforço enorme pra que a gente não saia do controle. E o que me ajuda a superar todo esse estresse é poder contar com amigas que sabem de toda essa dificuldade porque também passam por isso. E nos apoiamos umas nas outras conversando, refletindo ou simplesmente estando do lado uma da outra. O que ajuda a enfrentar tudo isso novamente no outro dia e no dia seguinte.
Saber lidar com estas situações é um exercício praticado diariamente. Seja na faculdade, no trabalho, em momentos de lazer, na internet, ou em qualquer outro espaço. E me fortalecer com o apoio de outras meninas é fundamental pra seguir lutando contra todas as opressões que nós, mulheres estamos sujeitas.
Denise Salomão Corrêa tem 22 anos, é negra, canceriana e estuda Comunicação Social – Jornalismo na Universidade Federal do Pará.
Maria
Maria poderia ser um ser humano qualquer, mas não é. Maria difere muito de seu vizinho João. João não passa pelas coisas que Maria precisa enfrentar no seu dia a dia. Os enfrentamentos que ela passa são muitos e eles iniciam logo ao acordar. Por mais que as histórias que nos contam na infância sejam repletas de príncipes encantados, Maria não beijou o sapo dos livros infantis. Ela cedo se casou. Infelizmente o príncipe que ela esperava encontrar não viera. Quando ela conheceu seu futuro esposo, ele prometeu o mundo todo para Maria, mas ela não percebeu que é impossível alguém lhe dar o mundo. Encantou-se por aquele homem que iria lhe dar o globo terrestre e assim esperou. Infelizmente Maria se deparou com um homem que aos poucos foi se mostrando autoritário, grosseiro e que cerceava suas vontades, das pequenas às grandes. Ao contrário dos livros de princesa, de príncipe, ele se tornou sapo.
Maria não podia usar roupas curtas, porque era coisa de puta, ou sair com amigas, porque mulher de família não saía, nem com amiga, por exemplo. Quando decidiu procurar emprego, mesmo o casal passando por dificuldades, o esposo de Maria disse que não era necessário, pois mulher tinha que cuidar da casa e da família. Maria e seu esposo não podiam ter filhos. Tentaram por várias vezes e ela sempre passava por abortos espontâneos. Depois de alguns anos, ela descobriu que tinha problemas de saúde e por isso não conseguia ter filhos, mas seu grosseiro esposo sempre botava culpa em Maria e dizia que não havia arrumado uma boa esposa, porque ela “não paria”. Maria se sentia triste, porém não conseguia deixá-lo pelos mais diversos motivos: financeiros, psicológicos, etc.
As coisas foram piorando financeiramente, pois ele perdeu o emprego de garçom. Desde então, ele teve que aceitar que Maria precisava trabalhar. Ela conseguiu um emprego como vendedora na loja Mesbla. Seu esposo se sentiu diminuído porque não admitia que um homem ficasse em casa enquanto sua mulher saía para trabalhar. Em decorrência disso, ele virou alcoólatra e as coisas só pioram para Maria. Todos os dias em que ela acordava para ir a Mesbla, lá estava aquele homem bêbado, largado no sofá, mal cheiroso da noite de farra, que a humilhava dizendo que mulher de verdade não trabalhava fora e sempre perguntava para onde a “piranha” ia todos os dias. O dia de Maria começava desse jeito.
Depois de enfrentar o machão bêbado, que algumas vezes a violentava fisicamente, Maria tinha de pegar o ônibus de Ananindeua para Belém a fim de chegar a tempo no seu trabalho. Dentro do coletivo ela passava por outros inconvenientes, pois tinha que desviar de mãos masculinas que o tempo inteiro tentavam tocá-la. De tanto receber toques no coletivo, Maria decidiu que não sentava mais ao lado de qualquer homem. Às vezes, ela chegava atrasada no trabalho ou acordava ainda mais cedo, para não ter que pegar o coletivo lotado, pois sabia que poderia sofrer mais um assédio diário. Certa vez, ela teve que pegar o ônibus lotado, pois estava em cima da hora e era Natal, momento de muito movimento na loja.
Maria subiu no coletivo e logo depois entrou um homem muito grande, forte e se alocou ao seu lado. Ele passou a olhar a mulher dos pés à cabeça e, não satisfeito, disse em voz baixa bem pertinho de seu ouvido: “por isso que tem homem que pensa em fazer besteira, com uma mulher gostosa desse jeito, impossível não querer foder”. Maria se tremeu dos pés à cabeça, e, por impulso, saiu empurrando todos dentro do coletivo até descer em qualquer parada de ônibus. Ninguém entendeu nada dentro do coletivo. Assim que conseguiu descer, olhou assustada para ver se aquele tarado tinha descido atrás dela, mas ele ficara no coletivo e olhara para Maria com um sorriso nos lábios e lambendo os beiços. Maria caiu em prantos na rua, mas ninguém acudiu a mulher. Por sorte, ela teve que caminhar apenas um quarteirão para chegar na Mesbla.
Chegou na loja e chorou ainda mais. Ela não conseguia falar absolutamente nada. Deram água com açúcar para Maria. Depois de mais calma, ela relatou o que tivera acontecido ao longo do trajeto. Algumas pessoas a acalmaram, mas uma colega de trabalho de longe sussurrou: “também, mana, com um vestido desse apertando os peitos…”. Infelizmente Maria fora vista como culpada por um possível estuprador tê-la assediado no coletivo. Não, moça. Maria não teve culpa nenhuma. De burca ou de vestido, homens estupram e assediam outras Marias mundo afora.
Maria bem mais calma, mas um tanto atordoada, começou seus afazeres diários como vendedora, porém uma notícia tirou sua calma depois do almoço. Ela ficara sabendo que iria perder o emprego, pois com a crise brasileira, a Mesbla passava por sérios problemas de finança e precisava cortar gastos. Sabendo da notícia, Maria foi para o depósito de roupas infantis chorar porque, a partir de então, não saberia o que fazer. No momento em que estava no local, escutou na sala ao lado, que era o escritório de um dos gerentes responsáveis pela loja, alguém falando algo sobre ela: “gosto muito de Maria, mas é preciso deixar José no seu lugar. Maria vende melhor que José, mas ela falta muito para ir ao médico para fazer uns exames periódicos infinitos. Acho até que é mentira. Estou desconfiando que ela falsifica atestado. Sem contar que pode engravidar e já viste né? Mulheres e seus problemas naturais acabam com a estrutura capitalista”.
Mal sabe o gerente que Maria ia fazer esse exames periódicos justamente por ter problemas ginecológicos e por isso não poderia ter filhos. Maria não estava mentindo. Maria também não teria filhos nunca. Depois de escutar tantas atrocidades, ela ficou pior ainda e desceu as escadas do depósito da Mesbla aos prantos e foi caminhar pela Praça do Relógio para ver se espairecia de tantos pesadelos num só dia. Ela comprou um coco e sentou para pensar e respirar. Dez minutos depois, se aproxima uma homem que resolve por conta própria, sentar-se ao seu lado sem ao menos pedir licença. Maria olhou assustada. O rapaz senta e diz que gostaria de conhecê-la porque ela era muito bonita. Maria enfurecida, levanta-se e diz: “me deixa em paz”. De lá ele retruca: “se fosse direita não estaria uma hora dessas aqui sozinha. Deve ser puta mesmo”.
Maria não viu o tempo passar por causa de toda a turbulência em sua mente e já eram mais de 22h e ela encontrava-se sozinha naquele lugar ermo e com alguns pedintes e homens bêbados que vinham da direção do Ver o Peso. Ela levantou-se e caminhou rápido e bastante, por longo tempo, até que chegou na Praça da República e resolveu sentar no bar do Parque para tomar uma cerveja antes de pegar o Ananindeua/Ver o Peso. Bebia bons goles e chorava. Até que alguém se aproximou e perguntou quanto era o “programa”. Já cansada de tantos assédios do dia, levantou-se sem ao menos sentir qualquer raiva, apenas cansaço mental, e atravessou a rua para pegar o coletivo. Chegando em casa lá estava aquele homem bêbado e mal cheiroso novamente a sua espera. Mas ele estava bastante bêbado e mal conseguia articular as palavras. Maria sabia que no outro dia não teria que acordar cedo e resolveu que dormiria até hora que quisesse para não ter que acordar e enfrentar a vida real.
Pela manhã, fora acordada aos berros pelo marido machão que perguntava se a puta não sairia para ganhar dinheiro. Ela teve de dizer que havia sido demitida e levou um tapa na cara do marido que afirmou que certamente ela fizera “alguma merda” para perder o trabalho. Naquela hora, Maria sentiu todas as forças que nunca sentira e resolveu fazer a mochila e ir embora. Enquanto saía de casa, o bêbado a xingava das piores atrocidades e disse que um dia ainda a mataria. Ela resolveu ir direto à delegacia para denunciá-lo. Chegando na delegacia, o delegado de plantão anotou suas denúncias fazendo pouco caso de sua história. Quando ela saiu da sala do delegado, aproximou-se uma moça responsável pela datilografia das denúncias e aconselhou Maria a ir denunciá-lo num lugar especializado, na Delegacia das Mulheres, explicando-a a Lei Maria da Penha e sua importância. Ela deu seu primeiro sorriso depois das 24 horas anteriores de angústia. Lá chegando, ela fora bem tratada e aconselhada sobre como deveria proceder desde então. Desde ali, ela dedicou-se a refazer sua vida. Mas não seria nada fácil, pois além de negra e pobre, tinha as marcas psicológicas de todas as agressões que vivera e, por vezes, ainda pensava “com carinho” no ex-marido. Por conta disso, alguém aconselhou Maria procurar o MADA, o grupo de “Mulheres que Amam Demais Anônimas”. Esse grupo é responsável pelo tratamento psicológico de mulheres que não conseguem se desvencilhar de relacionamentos abusivos. A partir daí, Maria foi melhorando. Ela passou a se amar ainda mais e se valorizar como uma mulher de verdade, pois anos de relacionamento destrutivo a deixaram com uma estima bastante baixa e destruída.
Cuidar de sua cabeça fez com que ela se amasse ainda mais e mudasse muitas atitudes: voltou a estudar. Depois de obter conhecimento na escola técnica, ela conseguiu um emprego. Sofreu muitas resistências, pois desde a Mesbla, ela percebeu seu apreço com os cálculos. Por isso, ela fez um curso de mecânica, mas teve que aguentar uma turma com 90% de alunos do sexo masculino, onde homens a desmotivavam, dizendo que lugar de mulher era pilotando fogão ou em curso de magistério, pois mulher que é mulher tinha que ser professora e ensinar que nem as nossas mães. Maria, já recuperada de muitos traumas, não levou em consideração tais atitudes machistas, mesmo que ainda sentisse muito o desprezo dos colegas, que quase nunca a chamavam para os projetos profissionais. Aos poucos, seu trabalho passou a ser reconhecido, e foi quando ela achou necessário fazer uma faculdade.
Prestou a faculdade e conseguiu passar em um concurso público na sua área. Ao longo desse percurso, Maria conheceu muito homens, uns interessantes outros não, mas resolveu que não gostaria mais de viver com alguém, pois percebia que não teria a mesma liberdade que tinha como mulher solteira. Você tem todo direito de não querer casar, Maria! Mas, um sonho ela ainda tinha: de ter uma filha. Acometida por doença que impedira dela ter um filho ou uma filha, Maria entrou em contato com psicóloga do MADA para saber quais eram os trâmites necessários para adotar uma criança. Ela fora informada e entrou na fila de espera. Maria passou alguns anos para conseguir adotar a tão querida menina, porque muitos alegavam que, mesmo com uma boa situação financeira e psicológica, Maria não tinha um esposo, e que era necessário que uma criança tivesse pai e mãe. Não, Maria, você é capaz de cuidar de uma criança órfã, mesmo sem a figura do sexo masculino!
Mesmo com os percalços, anos depois ela conseguiu adotar a mocinha que tanto sonhou. Hoje recuperada de muitas feridas, ela educa sua filha para o enfrentamento de um mundo machista e misógino, que infelizmente ainda vê a mulher como um ser humano incapaz e inferior ao homem, onde na verdade não é e nunca foi. Na faculdade, Maria conheceu um grupo de feministas que a acolheu, e ler sobre feminismo a ajudou bastante nos enfrentamentos diários e cotidiano de um mundo patriarcal. Hoje, Maria educa sua filha Ana com toda a liberdade. Ana escolhe a cor e brinquedos que quer usar. Porém, para além de cores e brinquedos, Maria educa Ana para enfrentar essa realidade nua e crua que terá que se deparar. Entretanto, Maria sabe que tudo que sofreu e aprendeu, ajudará Ana a construir um mundo melhor.
Força, Maria!
Esse texto não foi baseado em qualquer história em particular, mas nas muitas histórias das várias Marias espalhadas por todo mundo. Esse é um breve relato de algumas coisas que o mundo patriarcal oferece às mulheres. Os relatos são infinitos, mas esse ilustra uma pequena parte do que nós enfrentamos todos os dias de nossas vidas. Por isso é importante sempre lembrarmos que o dia 8 de março, assim como todos os outros dias de nossas vidas, é um dia de luta, até que um dia seja de glória. Toda a minha sororidade para as Marias desse mundo.
Anna Maria (coincidência?) Alves Linhares tem 35 anos, é professora de Sociologia e História, e fala sobre feminismo dentro e fora de sala de aula.
Monique
Às vezes acordo assustada. Vou tateando a mesinha ao lado da cama e alcanço o celular, olho pra tela, que quase me cega. O ano é 2016, respiro aliviada. Por uma fração de segundos o pesadelo parecia real, quinze anos se passaram, não preciso mais me trancar no quarto. Ninguém mais me espanca. As noites não são mais para imaginar quais pílulas tomar ou como cortar o pulso do jeito correto. No banho as esperanças se renovam, estou longe de ter casa própria, mas me importa ser feliz. Isso sim me importa. Luto para além dos traumas e violências que me atravessa(ra)m. Ser mulher no cotidiano é carregar uma mochila monstruosa de exigências. A violência não está apenas no corpo machucado.
Moro no Guajará, cada vez que saio de casa tenho medo não só de ser assaltada, mas do estupro. Esse é um medo constante na cabeça das mulheres. Aquele momento em que você é a última passageira ou o ônibus está lotado demais e um cara começa a esfregar o pênis na sua bunda.
Quando comecei minha vida como jornalista, a maioria dos elogios que ganhava eram coisas como “nossa, você escreve feito homem”, como se o gênero feminino não tivesse pulso firme nas palavras. E a cada trabalho de assessoria de imprensa excelente, uma surpresa. Às vezes eram surpresas horríveis, como clientes que me convidavam para “sair”, porque havia emplacado a cara deles na capa dos cadernos de cultura. Se fosse um assessor, viraria melhor amigo, mas eu não. Mulher talentosa dá tesão, a admiração fica reservada aos homens, que não sejam afeminados, é claro.
Apesar disso tudo, sei que ainda sou privilegiada.
As brancas querem ascensão na carreira, enquanto muitas vezes as negras ainda estão trabalhando como domésticas. E as trans? Muitas estão lutando para não ter que se prostituir, mas como não tenho essa vivência, posso apenas falar do meu dia a dia nesse texto. Tenho consciência que apesar das inúmeras violências que sofri, meu privilégio grita. Como posso, por exemplo, falar de amor livre e relacionamentos abertos se muitas mulheres sofrem com a solidão?
Durante o dia escrevo, hoje, minhas próprias histórias. E quer saber o que pensam de mulher escritora? Literatura feminina. Capa de livro rosa. Tema amoroso. Tudo, absolutamente tudo que fazemos precisa de um esforço para além de todos os esforços para que dê certo. Cansada, sabe? Nada mais nos meus dias segue uma linha reta, nem sempre me sinto mentalmente bem, mas falar e combater o machismo em todos os lugares é necessário, apesar das mensagens de ódio de homens misóginos – sim, eles estão em todos os ambientes. Principalmente virtualmente.
Chego a receber por semana várias mensagens de ódio de homens com os quais debato ou exponho, por conta de atitudes machistas. A militância é necessária dentro de casa, no trabalho, no relacionamento com meu parceiro e na internet. No ambiente virtual as mulheres que ousam falar o que pensam sentem o peso do machismo também. Muitas vezes saímos por loucas, feminazis e baderneiras, porque a sociedade quer mulheres caladas, domesticadas como um bicho qualquer. “Ah, mas hoje ninguém mais pode brincar”, dizem os escrotinhos. E que piada é essa que oprime? Não quero rir do outro, quero rir com o outro.
“Putas, viados e sapatões”, assim algumas pessoas da minha própria família se referem aos meus amigos. Sim, somos sim, e daí? Por ser mulher me é cobrado comportamento casto, não posso me expressar, preciso negar meu corpo, “não pinta o cabelo assim”, “usa preto que emagrece”, “precisas aprender a ser ótima dona de casa”. Até mesmo as pessoas com quem ando precisam ser normativas, ou melhor, heteronormativas. Sou vaca profana, sou sim! Não quero mais atuar como me ensinaram, quero transitar, transmutar. “Vaca Profana, põe teus cornos pra fora e acima da manada.”
Ficava pensando “porra, eu uso base, batom, cílios, mas não nasci gostando ou precisando dessas coisas”, então percebi que ou eu parava de usar ou usava para além da ideia de que mulheres precisam estar 24h com maquiagem e adornos. A pergunta é: qual o motivo de usar tudo isso? É isso, já atuava desde criança, aprendi a me comportar dentro do tal gênero feminino, tudo porque nasci com vagina. Se tudo é uma atuação vou exagerar ainda mais, vou me apropriar disso e transformar em outra coisa. Vou transitar pelos gêneros, vou atuar o não gênero, vou caminhar pela alma animal, vou atuar meu não humano, mas sem ser desumana. Viajei para o planeta desconhecido, mas quando cheguei lá, felizmente, tava lotado. Não estou sozinha.
Durante as noites, principalmente no final de semana, nasce de mim a “Cílios de Nazaré”, minha drag queen, club kid, demônia. Ela surgiu da observação do embate entre a Igreja Católica e a Festa da Chiquita, queria parir uma drag que se ornasse com as pedrarias e beleza da santa, mas que também falasse e nascesse do profano. Assim como o Círio de Nazaré tem seu sagrado e seu profano. Bicha e mulher têm poder, e a religião precisa ir além. Preconceito é o contrário do amor. Quando comecei era a única menina drag do meio que eu circulava, hoje felizmente algumas amigas estão começando a se montar. Mulher pode tudo.
Se fosse falar do meu dia a dia nos anos noventa, provavelmente falaria sobre um homem que não passava um dia sem oprimir ou machucar de alguma forma sua mãe, esposa e filhos. O mesmo homem pra quem fiz a primeira tatuagem, como forma de agrado. Porque existe uma coisa absurda nas relações violentas, a paranoia de achar que talvez você seja culpada.
Quando não estava apanhando ou sendo pressionada psicologicamente pelo meu pai, estava sendo hostilizada na escola por não ter um corpo magro e por ser séria demais. Foram 15 anos de depressão e comportamento explosivo. Todas as pessoas com quem me envolvi amorosamente na adolescência eram egoístas e ruins. Agradecia por qualquer companhia. Hoje o amor pra mim não existe antes do meu amor próprio, mas isso foi coisa conquistada na base do “unhas e dentes”.
Você não esquece o passado, mas pode engolir ou se ornar com toda a potência da dor e fazer do xingamento sua coroa de resistência. Foi o que fiz. Quando acordo ainda sinto um medo de não dar conta da nova vida que escolhi pra mim, mas sei que consigo. Essa semana volto à universidade pra cursar mestrado em Antropologia, sei que as dificuldades por ser mulher vão aparecer, como sempre aparecem, mas estou preparada. Inclusive em um dos processos de mestrado, que participei antes desse, um homem sentou ao meu lado e disse que seria fácil pra eu passar, era só jogar charme para os entrevistadores. E logo em seguida uma voz disse: “Monique Malcher, você é a próxima”. Entrei naquela sala acabada, mas em seguida pensei: “hoje não, seu escroto, hoje não!” A fronteira se expandiu, como se expandiram meus ouvidos. Existe um mar de mulheres esmagadas, cis ou trans. Brancas ou negras. Todas com intensidades diferentes. Minha história não é a pior. Tive a cor e as oportunidades de estudo para me catapultar. Deito a cabeça na madrugada e penso: como consegui chegar aqui? Foi o feminismo que me trouxe e é ele que me sustenta. Balanço, mas não despenco!
Monique Malcher tem 27 anos, é feminista interseccional, jornalista, escritora, drag queen e mestranda em Antropologia pela Universidade Federal do Pará.