O Repórter E convidou três mulheres para descreverem, em letras e versos, o ser mulher.
Para fechar este mês de março, o Repórter E pediu para três artistas das letras escreverem textos que resumissem sua relação com a mulher que cada uma delas hoje é. O resultado é um trio de escritos, entre a crônica e a poesia, onde podemos atravessar histórias, impressões e construções femininas. Por Inaê Nascimento, Dayane Ferreira e Mayara La-Rocque.
| INAÊ, 28

Oceanógrafa de formação e mestre em biologia ambiental, Inaê Nascimento vive da arte como quem mergulha em águas profundas. Bebe e inunda com suas palavras. Nesse texto inédito ela, que também é uma das fundadoras do Grupo Projeto Vertigem de experimentações artísticas, conta sua história como mulher e do seu feminino, que brotou no lar cheio de irmãs de gênero, e hoje se reafirma a cada novo escrito.
“Na minha infância, eu era a única criança da casa. Mais tarde, brotariam minhas irmãs e meus primos, mas até lá foram longos 11 anos em que eu reinava só de calcinha pela casa com a minha coroa de cachos. Os adultos a minha volta eram muitos e assim aprendi a brincar sozinha a maior parte do tempo, e a usá-los para escalar e me aconchegar. Às vezes sinto uma saudade enorme de um colo maior que eu para me abrigar.
A verdade é que eu não mandava em nada! Eu só fazia birra mesmo e deixava todo mundo louco quando tinham que me dar remédio. As Rainhas eram três: As minhas Avós e a minha Mãe. Elas eram brabas (ainda são, às vezes) e botavam todos em ordem (ainda botam, às vezes), ao mesmo tempo em que me mimavam com cheiros e sabores e me davam dengo. Os homens da casa pareciam crianças grandes, eram divertidos, me ensinavam brincadeiras e truques e me contavam histórias desse e de outros tempos, desse e de outros mundos. Vez ou outra faziam birra também, mas não mandavam em nada. Fui criada por mulheres poderosas e homens gentis e tranquilos. Foi um choque reconhecer o machismo.
Invento histórias e escrevo desde que eu lembro. Quando comecei a escrever poesia intencionalmente, eu sentia uma dificuldade enorme em escrever no feminino. Talvez por não me reconhecer então como mulher, no sentido maduro da palavra. ‘Mulher’ sempre me soou com uma densidade maior do que eu sentia vontade de carregar, ou algo em que era preciso se tornar com uma série de pré-requisitos e atribuições que eu não sabia se tinha ou gostaria de cumprir. Talvez, por pensar que poesia não tinha gênero. Bem, se eu não escrevia no feminino, eu escrevia no masculino, porque a língua portuguesa não nos permite nos referirmos as coisas sem atribuí-las um gênero, até para agradecer precisamos escolher um gênero.
Foi quando eu tive um contato mais efetivo e consciente com o feminismo que eu passei a escrever no feminino, como uma forma de reconhecimento da Mulher que eu sou, das mulheres a minha volta; como uma forma de fortalecimento da energia feminina que ainda é tão marginalizada e subjugada em tantas esferas, inclusive na palavra. Aos poucos e com muito esforço estamos desconstruindo essas e tantas outras intolerâncias e violências.
Passei a reconhecer o feminino de tudo. De mim, do meu corpo, das pessoas, dos outros seres, das entidades, das histórias, de Deus. Inevitavelmente isso vem no que eu escrevo, pois entendi que não há como eu escrever me isentando. Ainda que se trate de uma ficção ou um relato, eu estarei impressa ali, pois sou eu o canal daquela história, e ser eu inclui ser mulher, amazônida, escorpiana, e outras ‘cositas más’. Particularmente, gosto de reconhecer as pessoas através da sua obra, compreender os filtros de cada um. É na escrita que eu me assumo”.
| DAYANE, 22

Estudante de Teatro, Dayane Ferreira descreve a arte como “uma constante travessia para descobertas internas”. Ela, que vive experimentando o que a faz sentir algo, traz em “selvática” várias formas femininas e suas nuances, como uma construção que une várias num ser só, numa poesia feroz.
selvática
vestiu os sais, também os sáris
indumentária de eva sátir e kali
circundou a pele com a saliva das árvores
chegou sangrando, não pela fenda maior
mas por todas as outras que se fez, seu batismo de fera
cabaça cunhã permanece branda
desejo nenhum, carne que não treme
ostra silente
no seio é que gera, no peito é que sente
saudou as suas, recebeu as graças
fêmea feroz, só mira e range
não move, não acode
fêmea dócil, vibra e lambe
só geme, retorce
faz-se um conglomerado de grutas, arranjo de garras
preparo pro banho de folha
ao faro felino, serve-se o cálice de ervas
com faro ferido, surge o vinho de seivas
roda cheia de luz, Diluz é a fenda mãe,
meu farol interrompido, ronda pra essas bandas, onde o fluxo está contido
ronda por essas lanças, que o receio não encontre abrigo
concha eminente
no pendulo é que eleva, no útero é que mente
| MAYARA, 29

Mayara La-Rocque tem 29 anos, é educadora e tem larga produção independente na literatura. Vencedora na categoria Contos, em 2015, do Prêmio Proex de Literatura da Universidade Federal do Pará (UFPA), a “autora de muitos livros engavetados”, como ela mesma se descreve, nos entrega uma poesia onde a mulher é corpo e muito mais, é conflito e encontro, traço e caminho, fim e início.
Não há terra estrangeira maior
do que a de se sentir estranha
em si mesma.
O corpo arreganha,
entranha um caminho.
Os cheiros transmigram ervas
– essências internas que transnudam,
transudam o bicho pelos poros: o transe
Uma transa em si: a dança.
Os cabelos pregados na pele de suor
Entre os pelos,
as estrias delineiam origens
Entranhas, veias, varizes,
signos, estradas, pegadas
Tem uma pata no meu corpo
Tenho um rabo solto S O L T O
SOL
TU
SOU TU: CORPO
Vargem- várzea- vagina
Aberta- outra- margem
Parto
O gozo também é Doar
A dor
Onanizar a terra estrangeira
o gozo não é um fim ou lugar a se chegar
é caminho
a dança é o rito
o choro, orgasmo mulher
Tu gozas para ele como gozas para ti?
Para si
Para si ir
meu coração também é clitóris
e mais.
ainda não é o que pensas
é bem mais.
tu alcanças?
Certamente.
Lembra-te: vieste dele
Meu coração é um útero.